Erasmo Carlos já declamava em “Mulher (sexo Frágil)” o papel delas como musas inspiradoras, assim como para muitos bardos na história da humanidade. Essa inspiração feminina sempre teve muito impacto na publicidade, especialmente nos anos 1940 quando se tornaram imagem cada vez mais contínua. A presença do público feminino, contudo, sempre se manteve atrelada ao papel de mães e esposas para muitas marcas na propaganda. A Singer provava, em 1952, que mulheres prendadas tinham como ‘requisito básico’ a habilidade de costurar em casa e, para isso, sua máquina de costura era a mais adequada, com o apelo “Vale a pena insistir para ganhar a legítima”. A Epel reforçava a qualidade dos seus eletrodomésticos com o slogan “Assim, a vida é melhor. Aparelhos elétricos de real utilidade para conforto das donas de casa”, em 1947. Mas, as referências não param por aí, pois o guia da “mulher do lar” era reforçado para as novas gerações já na infância, com anúncios publicitários que vendiam até uma enceradeira, como o Champion Mirim. Criado em 1954, anunciava o lançamento do produto para tornar a brincadeira mais real para as meninas que poderiam aprender a “tornar a tarefa do lar mais agradável”.Quando não vinculada à casa, a publicidade da época enfatizava a importância dos cuidados com a beleza estética, uma prerrogativa fundamental para a mulher da época que tinha que dar conta de tudo e ainda estar arrumada para representar o seu papel para a família e na sociedade. Como podemos observar a propaganda alterou pouco sua visão em relação ao público feminino, apesar das mudanças de hábitos e comportamentos provocados pela Segunda Guerra, que mobilizou tantos homens no mundo e pracinhas brasileiros em terras estrangeiras. Independente do empoderamento feminino no mercado de trabalho, na política e em tantas outras áreas o setor ainda não a representa da forma como ela se vê e pensa na maioria dos comerciais que conhecemos. Mas, muitas produções deram um espaço particular para retratar a sua postura de um modo sensível e impactante, longe do código da “estelização da estética”.
Um dos maiores marcos desse posicionamento talvez seja a campanha “Primeiro Sutiã”, criado para a Valisere, em 1987, por Washington Olivetto, considerado um grande case da publicidade brasileira. Na lista dos 100 melhores comercias de todos os tempos, o filme protagonizado por Patrícia Lucchesi sensibilizou toda uma geração, antecipando inclusive ferramentas atuais como o storytelling. “A campanha criada para o público feminino que me marcou foi com certeza a do primeiro Soutien Valisére. Foi um caso raro de propaganda feita só para mulheres e com muita sensibilidade”, diz o jornalista e publicitário Geraldo Tite Simões (SP). Com o slogan “o primeiro sutiã a gente nunca se esquece”, o premiadíssimo filme ficou na história da propaganda nacional ao registrar um grande momento que define a transição feminina, quando a menina experimenta orgulhosamente sua primeira peça de roupa íntima.
O sucesso estrondoso desta pegada mais afetiva como artifício para projetar uma marca como a Valisère tornou famosa a jovem atriz de apenas 11 anos à época, consolidou o seu criador entre as estrelas do mercado e elevou a propaganda brasileira a novos patamares, inclusive como uma das duas únicas peças iberoamericanos listadas no livro Os 100 Melhores Comerciais de TV da americana Bernice Kanner, colunista e escritora de publicações de marketing e comunicação, falecida em 2006. “Primeiro Sutiã” reforça ainda hoje o básico que é a necessidade de pensar a publicidade para a mulher, de forma diferenciada e com impacto emocional.
“Atualmente o público feminino é visto como comprador apenas de sabão em pó. Todo o resto é voltado para o homem. Até eletrodomésticos são vendidos como produtos que facilitam a vida da mulher, para ter mais tempo para a família”, acredita Simões. Em sua avaliação, o segmento ainda não enxerga ou se posiciona realmente com relação à mulher no mercado e, desta forma, pouco se mudou em termos de conceito nos dias atuais. “Até hoje a mulher foi vista como o plano B das campanhas. Ela não compra, mas interfere na compra. Não existe publicidade voltada para consumidoras, apenas para mulheres que pedem para o homem comprar ou dar de presente”, completa.
A crescente ascensão econômica da mulher e o seu papel cada vez mais enfático no processo de compra tem sido desenhando ao longo deste século XXI. E por isso parece estranho reconhecer o ineditismo de uma marca que há mais de uma década mantém uma comunicação “De Mulher para Mulher”. Maior rede de varejo de moda feminina do Brasil, a Marisa se focou no público feminino da classe C em um projeto que sempre busca do diálogo constante com suas consumidores, sendo cúmplice, evoluindo e acompanhando seus anseios. “No período da infância, no final do anos 1980 e começo dos 1990, não me recordo de muitas campanhas voltadas ao público feminino. Me vêm à memória mulheres que ou, como modelos, apresentavam lingeries, roupas, sapatos, itens de higiene, limpeza e beleza, ou, na posição quase sempre de mães, incentivavam o consumo de produtos para o lar e para a família. Depois, já maior, lembro por motivos diferentes de duas campanhas: a da rede de vestuário feminino Marisa quando começou a usar o slogan “De Mulher pra Mulher” e a do sabonete Dove quando iniciou a campanha Real Beleza”, recorda Talita Rampazzo Diniz, coordenadora dos cursos de Publicidade e Propaganda/ Jornalismo da Faculdade Boa Viagem|DeVry (PE).
Trabalhando com a ideia de uma moda casual e para o dia a dia com qualidade para a mulher de verdade, a Marisa conseguiu estabelecer uma comunicação direta com as clientes, em diversas ações de comunicação externa e de endomarketing, além de facilidades que proporcionariam que a consumidora mantivesse seu guarda-roupa atualizado com as tendências. “No caso da Marisa, acho que porque era adolescente e também porque a campanha foi bastante massificada, o marcante mesmo foi o slogan associado a uma ideia de uma mulher mais independente, urbana, descolada. Ainda que existisse uma padronização estética e pouca diversidade no comportamento dessa mulher, parecia haver uma atitude diferente. A da Dove não. Lembro porque ela provocou, ao vender e mostrar vários tipos de beleza, uma quebra na imagem da mulher mostrada na publicidade. Isso gerou um debate grande sobre as ‘mulheres reais’ e também fez aumentar a autoestima feminina”, ressalta Diniz.
Mesmo depois de ter conquistado um espaço privilegiado na relação de consumo, não são todas as campanhas que propõe um novo diálogo, uma nova conexão entre a marca e o público feminino, segundo esta mestre e doutora em Comunicação pela UFPE. “A mulher ainda é tratada como um objeto, um fetiche sexual, um ser apenas preocupado com futilidades. Com isso, ela aparece na posição de coadjuvante nas campanhas de produtos que não sirvam ao embelezamento, ao lar e à família. E essa divisão entre o que se vende à mulher e ao homem é uma característica importante. A publicidade feminina continua limitando a imagem da mulher de tal forma que, quando uma campanha mostra algo próximo de nossa realidade, batemos palmas, comemoramos. Continua sendo uma exceção mostrar a mulher de maneira plural”.
Contudo, pondera que ainda há muito o que se considerar no que diz respeito à comunicação pautada para elas, fatores que são expressivos e importantes quando se pensa em publicidade feminina. A visão do segmento está se adaptando com o tempo e poderemos ter dentro em breve um posicionamento mais realista com relação a este público consumidor. “Apesar das críticas sobre como a mulher é mostrada, não se pode negar os avanços dos últimos anos. Aos poucos, o mercado está enxergando que todas as mulheres são consumidoras e que as mulheres são diferentes. O desafio tem sido aprender como atingi-las, pois já se percebeu que a padronização não está dando certo, pelo menos no lado das mulheres. Pensando na sociedade como um todo, os homens também precisam se incomodar em ver as mulheres como um bibelô, como parte de uma fantasia”, enfatiza Talita.
Mais do que meras protagonistas, elas tem explorado mais do que sensualidade nas campanhas dos últimos tempos e são o foco de ações estratégicas de marcas e empresas que apostam em sua força, importância e necessidades reais. “Estou no mercado há 30 anos. Em 80, brigamos pelo nosso espaço e muitas como eu, ocupamos cargos de Diretoria de Marketing e Comunicação. No entanto, nas agências ainda prevalece na Criação um mundo mais masculino, e acho que isso mudou de forma não sincronizada com o papel da mulher brasileira na sociedade atual”, dizMartha Terenzzo, diretora da Inova 360o e Storytellers (SP). Para a especialista, a comunicação atual corresponde um pouco mais com as demandas da mulher, diferente das campanhas femininas do passado, como as de beleza, por exemplo, que cultuavam a ideia das mulheres como o elo entre a mulher e o produto, com o objetivo de atrair olhares masculinos. “Gosto muito das campanhas da Natura em especial essa última, Viva a sua Beleza Viva, que evita os estereótipos de produtos mágicos e mulheres perfeitas. A Natura já havia celebrado essa beleza real, bem antes de Dove, com Chronos e volta a cena com uma campanha muito atual,convidando as mulheres a se expressarem e mostrarem sua real beleza. Algo imutável mas em movimento. Ela representa esse espírito do tempo que as mulheres estão vivendo”, comenta.
Há cinco décadas, a Natura busca a harmonia das pessoas com sua própria beleza através de produtos e serviços que promovam o Bem-Estar e o Estar Bem. E para isso aposta em diversas ações diferenciadas que mostram o quanto a consumidora é importante para a marca, como a surpresa para mulheres no cinema em 2011, integrando Ingresso.com e Cinemark, em ativação criada pela IDTBWA, no Shopping Market Place em São Paulo. Podemos enquadrar essa investida em um dos preceitos fundamentais para a Terenzzo, que é “conheça seu público e suas expressões para comunicar assertivamente”. Para ela, é preciso livrar-se primeiro de estereótipos para desenvolver um trabalho que de fato represente este público. “É muito triste ainda vermos propagandas de cerveja com mulheres de corpo perfeito, sendo vendidas como objetos. Aliás, isso já foi tão discutido no passado…Tenho a impressão que agora teremos uma melhoria. Em segundo lugar, vejo alguns criativos se esquivando do entendimento da sua audiência verdadeira. Sem entender de fato quem vai comprar aquele produto, serviço ou qualquer tipo de consumo. Isso parece relegado ao Midia e ao Planejamento, e muitas vezes não é seguido. Se o cliente não sabe, exatamente quem é sua audiência feminina, a agência tem que correr e pesquisar”, completa. Desta forma, vimos assim que a propaganda para as mulheres foge agora dos estereótipos e desafia a criatividade.
* Matéria produzida pela jornalista Ivelise Buarque para a Revista Pronews, edição de Maio/ 2016, número 193